O Abraço da Serpente: um outro olhar sobre as identidades indígenas

        Lançado no ano de 2016, o filme El Abrazo de la Serpiente (O Abraço da Serpente) se tornou um marco do cinema colombiano ao ser indicado, no mesmo ano, a concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O filme, dirigido por Ciro Guerra, tem como proposta, um repensar do espaço amazônico a partir da perspectiva da cosmovisão indígena da região do Alto Rio Negro e Vaupés, noroeste amazônico, fronteira entre o Brasil e a Colômbia.


        Um espaço até então desconhecido pelo diretor, a Amazônia colombiana se torna objeto de interesse do mesmo a partir do seu contato com o antropólogo também colombiano Ignacio Pietro. Segundo entrevista concedida por Pietro à rádio LAUD 90.4 FM, ambos se conheceram na Universidad Nacional da Colômbia, quando Guerra entrou em um grupo de teatro experimental dirigido por Pietro. Guerra então apresenta o roteiro de um projeto intitulado "La Sombra del Caminante" que seria filmado no ano de 2005. 
        Alguns anos mais tarde o antropólogo apresentaria a Ciro Guerra os diários de viagem do etnólogo alemão Teodhor Koch-Grünberg (1872-1924), que percorreu o Vaupés coletando artefatos das mais variadas etnias indígenas ali encontradas. Ignacio Pietro sugere então ao diretor um maior aprofundamento na leitura dos cadernos do etnólogo e, a partir de uma pesquisa in loco em várias comunidades indígenas desde o Vaupés colombiano, até o Rio Negro no Brasil, construírem juntos o roteiro que resultaria, alguns anos mais tarde, na película de 2016. 


         O grande interesse pelo O Abraço da Serpente parece residir na sua proposta experimental de imersão na simbologia das culturas ameríndias do noroeste amazônico. Para isso ambos, diretor e antropólogo, realizaram uma ampla pesquisa nos cadernos e estudos sobre o complexo cultural do Rio Negro produzidas por Koch-Grünberg, além de passarem algum tempo convivendo em uma comunidade indígena em Araracuara, no médio Caquetá, afluente do Vaupés na Amazônia colombiana, onde um ancião, Marcellano Guerrero, os ajudou a entender mais profundamente os costumes e conhecimentos sobre sua cultura.
            Falar sobre o encontro de culturas a partir da perspectiva do indígena é um grande diferencial da narrativa proposta por Ciro Guerra e Pietro Carvajal que buscam, através de inúmeros alegorias narrativas e recursos estéticos, levar o espectador a experienciar uma jornada ao universo lógico e simbólico das sociedades indígenas do Alto Rio Negro e Vaupés. Tal jornada se traduz igualmente em uma jornada pessoal do autor para deixar de lado a lógica ocidental para poder compreender os padrões referenciais de construção de mundo das sociedades indígenas amazônicas. 
Em entrevista à revista especializada, Caiman Ediciones - cuadernos de cine, Ciro Guerra explica a dificuldade do processo:

"Esse foi o meu processo pessoal. Comecei o projeto sendo muito fiel aos fatos históricos, à questão etnográfica. Quando comecei a conviver com as comunidades indígenas, entendi que esse apego que eu tinha pelo fato e pelo fato histórico não fazia sentido. Para obter um filme especial e único, deveria ter a perspectiva dessas pessoas, falar de um ponto de vista que ainda não foi usado. Devemos dar grande importância ao sonho e à imaginação, já que para eles são tão real quanto o que chamamos realidade. O filme foi contaminado pela lógica do mito amazônico, que no começo é muito difícil para nós entendermos. O filme constrói uma ponte entre a nossa lógica e deles. Se eu tivesse apresentado o mito amazônico a partir de uma dinâmica documental, teria perdido a conexão com o público, o filme teria se tornado incompreensível para o espectador" (Javier H. Estrada. Entrevista Ciro Guerra. "El nativo visionario y los exploradores sin sueños". Revista Caimán-cuadernos de cine. <https://www.caimanediciones.es/entrevista-ciro-guerra-version-ampliada-de-caiman-cdc-no-46/>)




            Apesar de ser descrito por Guerra não como um retrato fiel do passado, mas um “ambiente do passado reconstituído a partir de uma experiência sensorial” (METROPOLIS, 2016), a película nos coloca em contato com uma rica reflexão sobre a questão do histórico de contato e suas múltiplas implicações num processo estético de imersão na experiência multinaturalista da perspectiva das identidades indígenas amazônicas.
            Uma das escolhas estéticas do autor que nos levam a perceber tais propostas narrativas é o uso do preto e branco do filme como forma de fuga da “mimese do real” não atingível pela lente da câmera e como forma não só de fazer o espectador imergir em um ambiente onde homens e natureza se fundem, como na sugestão de que o espectador "construa" uma coloração para a imagem oferecida a partir da sua própria imaginação. Além da coloração do filme, outra interessante escolha para  obra, que nos apresenta o autor, é o de rodá-lo em filme 35 mm, assim explicado por Guerra:

“La película está inspirada en las imágenes que tomaron los exploradores en los que se basa la historia, imágenes que eran casi daguerrotipos. Son los únicos documentos que sobrevivieron que muestran a muchas comunidades amazónicas. Queríamos que el filme se acercara a esa textura de las fotos, que transportara directamente a esos años. Hicimos pruebas con varios formatos digitales, pero nos dimos cuenta de que no servían para capturar la luz natural ni los detalles que ofrece la selva, no tenían la cualidad orgánica que buscábamos" (Guerra, entrevista concedida ao site do jornal El Ibérico em 06 de junho de 2016. <https://www.eliberico.com/entrevista-a-ciro-guerra/>).



            Portanto, a escolha e utilização do filme O Abraço da Serpente para pensar acerca das mudanças nas representações acerca do indígena na América Latina, se inscreve na perspectiva de questionamento do papel dos cientistas e viajantes que desbravaram a Amazônia e a forma como construíram leituras e classificações sobre as populações indígenas proposta pelo diretor Ciro Guerra, bem como de outros processos desencadeados na esteira da imposição colonial, como a influência das missões católicas que desencadeariam novas experiências religiosas no contexto pós colonial, bem como a forma contundente com que a exploração comercial da Amazônia, como a desencadeada pela exploração da borracha, afetaram, e ainda afetam incisivamente as mesmas.




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