Por que "Cobra Grande"?
Alguns devem estar se perguntando do porquê do nome do blog ser "Cobra Grande". Bem, essa escolha se deu a partir da escolha de se trabalhar o ensino de história e cultura indígena através do cinema ao assistir, no ano de 2017 ao filme O Abraço da Serpente (2016) do diretor colombiano Ciro Guerra. Esse filme tem como elemento principal da narrativa, o mito da anaconda ancestral, uma grande cobra que teria, a partir do
surgimento dos primeiros seres humanos espíritos, levado e dispersado a
humanidade em ordem hierárquica, pelos territórios dos rios Negro e Vaupés no
noroeste amazônico.
Esse mito de origem é comum a diversas etnias do noroeste amazônico e diz respeito a uma anaconda ancestral (de variadas nomenclaturas, a depender do grupo a narrá-lo: cobra canoa, cobra grande, canoa da transformação, sucuriju ou anaconda ancestral) teria descido da via láctea através da “porta da água” com toda a humanidade em seu corpo e, ao alcançar a cachoeira de Ipanoré, no baixo rio Uapés, teria emergido do buraco de origem, nas pedras das corredeiras da cachoeira, e ao longo de sua passagem pelo rio, essa primeira humanidade, seres ancestrais-espíritos, iam povoando a terra e ocupando seus respectivos territórios ao longo do rio de forma hierarquizada, em ordem de saída e correspondendo a cada nível/corpo da própria cobra canoa.
Segundo Denise Pahl Schaan a referência à figura da cobra entre os povos do alto rio negro se dá de maneira ainda mais incisiva por ser esse animal considerado a “mãe dos peixes” o que, para sociedades eminentemente baseadas na pesca enquanto subsistência, teria assim uma influência bastante pujante (SCHAAN, 2007, p. 106). Ciro Guerra então toma essa analogia da cobra canoa enquanto, não só metáfora do próprio rio e sua sinuosidade como essa cobra viva a envolver sonhos, realidades e expectativas dos homens que se aventuram em suas águas, como também referência do eterno embate entre o apetite voraz do predador branco sobre os saberes e humanidades da floresta.
Logo, o mito da “cobra canoa” ou da “canoa da transformação”, diz respeito à dispersão da humanidade ao longo dos rios amazônicos e o povoamento do Rio Negro, Vaupés e seus afluentes. Tomando a síntese das pesquisadoras em arte visual da Universidade Federal do Amazonas, Priscila Passos de Lima e Priscila de Oliveira Pinto Maisel que, tendo por base as narrativas e os desenhos de Feliciano Pimentel Lana, Dessana da aldeia de São João Batista no rio Tiquié, no livro “Antes o mundo não existia”, assim nos descrevem o mito:
"Para os Dessana, o mundo ainda nem existia quando uma mulher surge por si mesma coberta de enfeites, ela então fez um “Quarto de Quartzo Branco”, esta era a “Avó do Mundo”. Então, ao surgir um balão que envolvia toda a escuridão do mundo, pois apenas no seu quarto havia luz, ela o chamou de “Maloca do Universo”.Seu desejo era colocar pessoas nessa grande “Maloca do Universo”. Para isso, transformou ipadu retirado da boca em cinco homens, os “Avôs do mundo”, estes também eram trovões, os “Homens de Quartzo”, também chamados de “Irmãos do Mundo”. Uma vez que eles não cumpriram a função determinada pela Avó do Mundo de criar a luz, os rios e a futura humanidade, ela criou outro ser a quem deu o nome de Bisneto do Mundo, na esperança de que ele pudesse assim cumprir seu pedido.Os trovões, enciumados, foram acalmados pelo Terceiro Trovão, que juntou suas riquezas e entregou ao Bisneto do Mundo guiando-o em um ritual onde as riquezas viraram gente, que seria a futura humanidade, em seguida, fizeram um desfile no pátio da maloca.O mito conta que o terceiro Trovão, um dos “Avôs do mundo”, desceu ao “Lago de Leite”, que seria o oceano, na forma de uma cobra levando na sua cabeça, que parecia a proa de uma lancha, o Bisneto do Mundo e seu irmão como os comandantes desta Cobra-Canoa. Eles levavam um par de enfeites mágicos que após o ritual se transformavam em gente e entravam nas malocas deixadas pelo Bisneto do Mundo, estas malocas seriam as Malocas da Transformação, onde hoje estão localizadas cada cidade à margem do Lago de Leite.O Bisneto do Mundo, portando seu bastão cerimonial, ia na frente da canoa e seu irmão no centro; dentro da canoa levavam as riquezas que se tornariam a futura humanidade. A embarcação vinha como submarino no fundo da água e a humanidade veio como Gente Peixe. Os enfeites mágicos eram aportados à margem do lago e fundavam ali a população do lugar. As Malocas da Transformação estariam às margens do que seriam Rio Negro, Rio Amazonas e litoral do Brasil. A cobra, portanto, é a genitora, e o Lago de Leite seria o útero, sendo a responsável pelo transporte de todas as etnias pelo leito do rio e, por fim, o homem branco. Essa seria a visão dos Dessana sobre a origem da humanidade." (LIMA e MAISEL, 2017, p. 4380-4381).
Essa versão sintetizada acima é contada do ponto de vista da etnia Dessana, porém compartilhada, com poucas variações, entre os grupos que partilham de uma mesma tradição histórico cultural no Atto Rio Negro e, como dito anteriormente, explica algumas questões importantes, como a hierarquização existente entre as etnias do rio e da floresta, a divisão dos objetos primordiais entre esses mesmos grupos, bem como a importância da região para a história e perpetuação dessas etnias.
O uso do plano detalhe, um close up em primeiríssimo plano, tem por finalidade provocar efeitos psicológicos e emocionais ao espectador. Fonte: Frame de cena do filme O Abraço da Serpente |
No filme essa alegoria nos é apresentada logo de início, na bela
sequência de cenas que intercala a alternância de tempos nos dois encontros
entre cientistas e o novo/velho xamã. Aos 08min49s um close up focaliza, em um plano detalhe, uma
grande cobra, a grande anaconda ancestral. O diretor Ciro Guerra parece se utilizar dessa alegoria para nos introduzir ao universo conceitual das etnias do Ato Rio Negro. Com o uso de um canto xamânico como trilha de fundo, vemos a grande cobra ancestral em um ninho no meio das pedras, de onde eclodem diversos ovos dando vida assim seus inúmeros filhotes e ao logo de todo o filme diversas vezes somos lembrados dessa relação entre a anaconda ancestral e os personagens indígenas da narrativa.
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