O cinema e as múltiplas representações sobre o indígena

            A partir da ideia de pensar o uso da linguagem cinematográfica como meio de abordar o ensino de história e cultura indígena em sala de aula, faremos nessa postagens alguns apontamentos em termos de comparação, entre algumas representações feitas acerca das identidades indígenas na América pelo olhar estrangeiro em comparação com o filme objeto de nossa pesquisa, "O Abraço da Serpente" (20016). 
                O eixo narrativo da obra, nos parece ser a ideia da colonialidade do saber/poder em decurso a partir do processo de colonial que põe em confronto um processo de construção do conhecimento ocidental, cartesiano, objetivo, pragmático e universal e o conhecimento gerado pelo processo subjetivo, delirante, intuitivo e sensitivo dos povos indígenas amazônicos. 
              Tal embate perpassa toda a extensão do filme, sendo sempre acionado, seja como principal assunto na cena, seja como pano de fundo de outras discussões.  Fazemos então uma leitura sobre as diversas abordagens acerca das representações da floresta que acabam reforçando as oposições e antagonismos baseados na premissa do bárbaro, do exótico e do selvagem atribuídos à Amazônia e seus povos em oposição ao Outro, o estrangeiro civilizado, entorpecido e aniquilado pela paisagem ao mesmo tempo inebriante e devastadora. 


          Para isso dialogamos com outras produções cinematográficas antigas e atuais que nos permitem realizar uma análise em perspectiva comparada ao reflexão conceitual proposta por Ciro Guerra.como aquelas feitas acerca das noções de sonho e alucinação, como dimensões da experiência cognitiva e sensitiva de cura e de produção do conhecimento do Outro e da floresta realizada pelos povos indígenas amazônicos.
           Assim a cobra no filme, mais do que apenas mais um animal da floresta, passa a ser identificada também com a reprodução dos padrões visuais oriundos da ingestão da ayahuasca, bem como sua analogia com o movimento da Anaconda no rio e no corpo de quem o ingere, ampliando a percepção, a comunicação com o todo e elemento de apreensão e construção do conhecimento da floresta.

                Logo, enquanto um tipo de linguagem, que se comunica através de imagens, sons, sinais e gestos, o cinema se baseia em um jogo entre a encenação e a representação do real a partir da montagem, entendida aqui a partir de Christian Metz (1980) como a manipulação fílmica de elementos representativos, ou não, do real. O ordenamento dos múltiplos signos que o compõem em um encadeamento lógico que se transforma em discurso a partir das escolhas de quem o produz.

              Portanto, o uso do cinema para a educação é pensar justamente o espaço escolar enquanto espaço, por excelência, da construção, invenção e reinvenção de significados e imposição de convenções sociais através da formação intelectual dos indivíduos. Para nós então, tal utilização se efetiva como subsídio para auxiliar na formação docente a partir da reflexão dos mesmos acerca da redefinição dos seus olhares e práticas pedagógicas uma vez que o mesmo, como aponta Fresquet, atua como meio e ferramenta de provocação acerca das suas significações instituídas, seus conceitos e preconceitos a partir dos imaginários legitimados. 
               Ou seja, o modelo educacional tradicional e legitimado, ao se encontrar com as artes e, em especial com a arte cinematográfica, se impregna de frescor e inventividade e passa a repensar as bases conceituais em que a mesma se assenta a partir das reflexões de significação do imaginário social instituído.


                 Ao aprofundarmos essas observações do uso pedagógico do cinema estendendo o diálogo ao ensino de história é preciso que se acrescente outro ponto importante à análise, qual seja, a de ser qualquer obra fílmica dotada de sentido estético, sensorial, mas também, como afirma Marc Ferro (1992), entender o filme enquanto uma fonte de pesquisa para a história, uma vez que, qualquer que seja o gênero narrativo, é passível de investigação por ser um produto de uma determinada época, logo, por mais ficcional ou fantasiosa que sejam seus elementos constitutivos, carregará traços do seu contexto de nascimento. Assim, ao “droutrinar, glorificar” (FERRO, 1992, p. 13) ou mesmo em sua tarefa de representar o real, o filme constrói, ele mesmo, outras formas de pensar e representar esse real e, por resultado passa a ser também ele um produtor de memórias sociais
                Na história mundial do cinema, o encontro de culturas sempre foi um dos temas recorrentes nos mais diferentes gêneros e narrativas. Em uma analogia antropológica curiosa, é através da tela do cinema que iniciamos uma longa e proveitosa jornada de imersão e contato com paisagens e culturas as mais distantes e diversas possíveis. O discurso sobre o outro em toda sua complexidade e exotismo tornou-se um dos grandes lugares comuns das cinematografias mundiais, sendo utilizado desde as narrativas mais clássicas, como em Green Hell (1940) na chamada “Era de Ouro” do cinema estadunidense, passando pelos clássicos do Novo Cinema Alemão Aguirre, a cólera dos Deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982) do diretor alemão Werner Herzog até os atuais e não menos estereotipados Welcome to the Jungle (2007) e Green Inferno (2015).

Green Hell (1940). Fonte: http://www.c1n3.org/w/whale01j/Images/480.html

              Em comum, apesar de muitas se passarem em espaços e retratarem populações e florestas diferenciadas, a quase totalidade dessas películas apresentam a mesma narrativa, a exotização de um outro animalizado e irracional em meio a uma paisagem inóspita e adversa, ambos em confronto com o estrangeiro que ora é retratado como apenas um curioso e ingênuo visitante ou como o benevolente colonizador, ou outras vezes mesmo um heróico desbravador engolfado pela insanidade da floresta incompreendida. E é justamente nessa dita incompreensão que Guerra busca nos fazer transitar, no debate que para além da retórica do “encontro/choque” de culturas, busca questionar o lugar mesmo da dicotomia racionalidade x irracionalidade, conhecimento x ignorância, civilização x barbárie.
                Desde a obra Green Hell (1940)  do diretor britânico radicado nos Estados Unidos, James Whale, a narrativa da grande indústria cinematográfica sobre a Amazônia se baseia em reforçar os aspectos fantásticos e misteriosos construídos ao longo dos anos pelos cronistas, literatos e documentaristas que a visitaram dos primórdios da colonização até o alvorecer da tecnologia do cinematógrafo, com o apogeu do ciclo da borracha (LOPES, 2015).
Aguirre a cólera dos deuses (1972).
Fonte: http://escritoemluz.blogspot.com/2010/12/aguirre-colera-dos-deuses.html

                 Dentre os elementos mais realçados nessas narrativas se encontra a ideia da floresta como um lugar exótico e assustador, com populações nativas selvagens e, muitas vezes, canibais, bem como povoada de animais gigantescos ou até pré-históricos: O Monstro da Lagoa Negra (1954), O Mundo Perdido (1960), A Floresta das Esmeraldas (1985), Anaconda (1997), Um Lobisomem na Amazônia (2005), são alguns dos exemplos mais notórios. Por trás da macronarrativa do exótico, outra noção subliminar e comum a todas essas leituras se impõe com peso substancial: a ideia do confronto entre a racionalidade civilizadora do estrangeiro, em geral o europeu ou o estado unidense, versus a selvageria e barbárie do nativo imerso em uma floresta desconhecida e indomável. 
             Em sua dissertação de mestrado, Geovane Silva Belo (2013), a partir do conceito de “estigma” desenvolvido por Erving Goffman (1980), faz um longo e laborioso trabalho de levantamento filmográfico de como o olhar “estrangeiro” constrói uma narrativa eivada de um imaginário que é, simultaneamente, fantástico e monstruoso mas que passa a fundamentar uma leitura dessa região a partir das noções entre um eu superior racional e civilizado e um outro misterioso e incivilizado, situado em algum ponto anterior do avanço modernizador da sociedade europeia:
Essas marcas fixadas no pensamento sobre a Amazônia constituem um discurso alquebrado, estático, não estético ou, se estético, quase paralisado no tempo. Essas preconcepções estão enraizadas não só nos pioneiros no reconhecimento das terras da Amazônia, mas nos cineastas estrangeiros, nos pesquisadores, nos antropólogos, nos historiadores e nos literatos, com as devidas ressalvas obviamente (BELO, 2013, p. 15). 
Fitzcarraldo (1982).
Fonte: https://www.theguardian.com/film/movie/82699/fitzcarraldo

                 A antítese entre civilização e barbárie pode ser vista como um dos pilares de sustentação da noção de Modernidade ocidental. Inúmeros são os pensadores, desde a Antiguidade Clássica que irão se debruçar na busca de compreender a alteridade enquanto uma afirmação do Eu frente ao Outro. Segundo João Luiz Medeiros (2013) são essas percepções e conceitos que irão sedimentar o olhar ibérico sobre o novo mundo, legitimando estruturas, definindo conceitos e estabelecendo hierarquias. O etnocentrismo ocidental normaliza o discurso sobre o Outro lhe relegando o status de um estranhamento ora passível de ser conquistado/assimilado, ora reprimido/omitido, mas, quase nunca, igualado/identificado. 
               No continente americano, desde o primeiro olhar do conquistador ibérico sobre a terra nova, passando pelas iniciativas científico-civilizacionais e o esforço de “definição” de uma identidade americana, até as recentes retóricas de combate ao terrorismo internacional, a categoria dual civilização e barbárie constitui-se como uma das grandes marcas identitárias. A ambivalência do olhar inicial, relação dicotômica atração/repulsão, América/Europa, o binômio civilização e barbárie marcam de forma indelével o imaginário cultural latino-americano (MEDEIROS, 2013, p. 27).
                Em termos de comparação, trazemos uma breve análise do filme considerado por muitos, na época do lançamento do Abraço da Serpente, uma forte influência e referência ao filme de Ciro Guerra. A obra do diretor alemão Werner Herzog, intitulada “Aguirre, a cólera dos deuses” de 1972 é uma das obras fruto do movimento de renovação do cinema mundial impulsionado pelo realismo poético francês que sucedeu as vanguardas estéticas de início do século XX e que também inspirou o neorrealismo italiano pós segunda guerra mundial. Em linhas gerais, ambas vertentes estéticas tinham como características transpor o paradigma de produção cinematográfica norte americano vigente até então com  suas grandes produções feitas em estúdio, retratando e exaltando, em geral, o “american way of life” . 

O Abraço da Serpente (2016) Fonte: Frame de cena.

                 Esse “Novo Cinema” tinha ainda como características a busca por um cinema mais autoral, visando retratar personagens e cenários mais realísticos, usando, às vezes, intérpretes não profissionais, bem como um minimalismo técnico que bem pode ser representado pela já célebre frase do expoente do cinema novo no Brasil, Gláuber Rocha: “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”. Herzog se lança então na ousada empreitada de, com um orçamento baixíssimo, produzir um épico para aquele período, retratando o episódio histórico da expedição de Don Lope de Aguirre que, tendo a tomada do império Inca pelos espanhóis como pano de fundo, sai em busca da lendária cidade do Eldorado na Amazônia Oriental.
             Com um grande elenco e poucos recursos técnicos, o diretor consegue produzir um dos clássicos do Novo Cinema Alemão com a ajuda da parceria que duraria por muitos outros trabalhos, do ator Klaus Kinski no papel do ambicioso Aguirre, em uma jornada de loucura em meio a uma Amazônia gigantesca e avassaladora  .
             Apesar da proposta de renovação empreendida por Herzog, muitos são os elementos que ainda persistem em sua obra, frutos de uma leitura exotizada da região amazônica e seus habitantes. A floresta ainda é vista como um espaço “infernal”, que por conta das suas muitas e intransponíveis barreiras naturais, dizima a coragem, a saúde e a sanidade do colonizador mesmo que isso seja retratado através de uma forte crítica à ambição desmedida daqueles que se lançavam às aventuras em busca de glória e riqueza;
                A predileção pelos planos abertos, inclusive o belíssimo plano inicial filmado em um close up lento que gradualmente vai se fechando em uma procissão de homens que mais se assemelham a formigas subindo a cadeia de montanhas dos Andes peruanos, além da pouca e a quase invisibilidade da participação do nativo em sua construção narrativa, atestam em Herzog a manutenção de uma visão ainda bastante eivada de estereótipos de um olhar estrangeiro sobre a paisagem amazônica.

               Em contrapartida, o diretor colombiano Ciro Guerra em O Abraço da Serpente constrói uma narrativa que tem por objetivo colocar em cheque muitos destes paradigmas estéticos de forma a questionar mesmo o local de imposição do conceito de civilização. Tal conceito, como nos aponta Norbert Elias, nasce fruto de uma tentativa de definir e classificar o alcance das conquistas materiais e intelectuais da sociedade ocidental, atribuindo assim um grau de significação de caráter universal para o chamado desenvolvimento das potencialidades humanas, de modo que, o parâmetro e ápice seria aquele em que a mesma se encontra, relegando a um grau de atraso e “primitividade” todas as sociedades que não se encontrassem ou partilhassem dos mesmos paradigmas e conceitos.

O Abraço da Serpente (2016) Fonte: Frame de cena.


              Ailton Krenak, em o Eterno Retorno do Encontro (NOVAES, 1999) nos diz algo bastante indicativo em relação ao entendimento do sentido do “encontro” para as sociedades indígenas. Ao contrário do que nos faz pensar o sentido evolucionista e linear ocidental, o choque do encontro com o civilizado, para as sociedades ameríndias não se dá apenas com a chegada do europeu às terras da recém descoberta “América” entre os séculos XV e XVI, mas vai além e se reativa cada vez que ambas visões de mundo se põe em confronto.

                Portanto uma efetiva dimensão educativa na perspectiva da interculturalidade perpassa por: 1) entender que o próprio termo “índio” é em si uma invenção criada por um agente externo no contexto do contato e da imposição civilizadora, muito embora assumida e ressignificada a partir de uma dimensão de identificação étnica e diálogo com o diferente muitas vezes em situações de posicionamento político e organização/movimentação social e 2) saber que para o ensino de História e Cultura indígenas, assim, no plural como o é as inúmeras culturas nativas, faz-se necessário um complexo posicionamento de negação dos parâmetros de hierarquização próprios dos processos de dominação colonial e seus intrincados processos de definição, apreensão e ordenamento do mundo a partir de uma lógica eurocentrada, onde a racionalidade de matriz cartesiana de domínio e controle da natureza se sobrepõe a uma noção de coexistência e equilíbrio, muitas vezes lida e classificada como um discurso inferior, da ordem do eminentemente fantástico e fantasioso ou da crença ou de um sagrado que é qualquer outro que não o da experiência concreta de quem os vive. Assim cada complexo cultural tem seu próprio léxico e arcabouço lógico normativo pelo qual, nada mais é do que ato rasteiro de interpretação tentar imputar a lógica de um Outro que lhe deve orientar e classificar.

           O que faz Ciro Guerra com a construção narrativa da oposição entre os personagens Karamakate e cientistas é justamente jogar com esse duplo ambíguo e dissonante do ocidental refinado, polido, comedido e o bárbaro grosseiro e inculto. Inicia-se assim um processo de construção de uma narrativa cinematográfica decolonial – ainda que não tenhamos certeza se diretor ou produção tiveram leituras diretas dos conceitos e pressupostos epistemológicos decoloniais, apesar da assessoria antropológica durante o processo de construção do filme – que visa provocar os sentidos e conhecimentos colonizados do espectador, colocando o ponto condutor do olhar da narrativa na figura central do personagem indígena Karamakate.
              Contrariamente às obras que o antecederam e que usualmente punham em relevo aspectos como o exotismo selvagem do ambiente da floresta versus o desafio do controle do mesmo pelos conhecimentos e pela força do colonizador, o diretor nos propõe um novo viés, o embate epistemológico. A escolha por uma narrativa temporal não linear já é em si um dado a favor dessa proposta que põe em xeque o impacto do processo colonizador, não só via aniquilamento físico e social dos povos indígenas da América, mas, e principalmente, o profundo e devastador impacto nos campos simbólico e epistemológico.


O Abraço da Serpente (2016) Fonte: Frame de cena.
            Ciro Guerra se utiliza, então, dos mais variados detalhes e recursos estéticos narrativos, fotografia, direção de arte, edição som, manejo de câmeras, no sentido de opor e subverter a máxima da barbárie e da ignorância ameríndia e do conhecimento e da racionalidade europeus. Às vezes, de maneira sutil, quando implícita e silenciosamente faz “aparecer” a importância dos animais ancestrais na condução dos atos e decisões de Karamakate, ou explícita quando confronta a ideia de “polidez e controle” civilizacional do visitante ao domínio do arcabouço linguístico e conhecimento “racional” da floresta pelo xamã. Essa posição de superioridade “civilizada” do nativo em relação aos modos bárbaros e a falta de controle diante da natureza do outro estrangeiro, são diversas vezes sugeridos através de tais recursos.
              É possível inferir, por exemplo, a partir do tipo de enquadramento de câmera que faz Ciro Guerra ao longo do filme, sua intencionalidade em representar a superioridade de Karamakate em relação aos seus interlocutores no ambiente da floresta. Na grande maioria das cenas é nítida a posição da lente que o coloca sempre a frente e em primeiro plano, sugerindo a ideia de que seus conhecimentos da floresta seriam mais adequados que os conhecimentos que os “cientistas” viriam construir a partir do contato. O uso recorrente do posicionamento da câmera em contra-plongée nos é assim um indicativo de tal intencionalidade. 
            Assim é que atitudes que são lidas de maneira negativa pelo civilizador, atos de extrema barbárie e selvageria, não são impossíveis de ser praticadas em sociedades altamente desenvolvidas tecnologicamente ou com altos graus de polidez e refinamento e são aceitáveis quando praticadas em nome da civilização. Um bom exemplo é dado por Zygmunt Bauman quando nos fala, em seu Modernidade e Holocausto (1998), que os bárbaros genocídios perpetrados contra os judeus não foram meros “fatos da história judaica” mas um evidente problema “da nossa sociedade Moderna e racional, [executado] em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano” (BAUMAN, 1998, p. 10). Do mesmo modo, se tornariam aceitáveis e até requeríveis, em nome de uma adaptação civilizadora, o holocausto dos nativos americanos durante a colonização.

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