Os usos da imagem e a temática indígena no ensino da História


Os registro visuais, enquanto documentos históricos - como qualquer outro documento produzido pelo homem - pressupõem uma acurada interpretação de seus contextos sociais de produção e dos códigos e símbolos inerentes aos mesmos. Quando se fala, ao trabalhar com documentos escritos, dos ditos e não-ditos inscritos nos textos, fala-se das escolhas de exposição e silenciamento realizadas por seus produtores. Na mesma medida, os registros audiovisuais encerram escolhas realizadas por quem opera os equipamentos técnicos que vão desde as formas de enquadramento do que se quer registrar, até os aspectos ou modelos que se quer deixar registrado. São os códigos, significados e propósitos inerentes às escolhas do autor, que estão diretamente relacionados ao seu lugar contexto social de seu tempo, os ingredientes que possibilitam a análise imagética enquanto documento histórico. 
Nesse sentido, tanto os registros visuais que se propõem documentais quanto aqueles que, contrariamente valorizam aspectos da subjetividade e inventividade criativa daquele que o produz, trazem, em si, aspectos passíveis de uma análise sócio-cultural do contexto em que foi produzido. Torna-se assim, importante analisar a mudança de abordagem que leva, com o passar do tempo, a uma gradativa alteração na perspectiva de representação do indígena brasileiro para o trabalho coma temática indígena em sala de aula. 
Os primeiros viajantes e naturalistas responsáveis por fazer os primeiros registros das terras recém "descobertas", encarregaram-se de descrever e apresentar o exotismo e “barbarismo” daqueles indivíduos aqui encontrados a uma Europa que ainda não familiarizada com o novo mundo que então se descortinava. As imagens da atribuída “selvageria” dos nativos contrastava com os aspectos de uma suposta ingenuidade ideológica que lhes pressupunha uma necessária de intervenção moral e religiosa por parte dos recém chegados “descobridores”. Assim, as pinturas produzidas na época buscavam ressaltar esse exotismo selvagem de homens e mulheres de costumes tão diversos.

Gravura alemã de 1509, que descreve os Povos
bravos e nus, antes desconhecidos.cionar legenda
            
             Cena do ritual Tupinambá
              Xilogravura de Hans Staden (1557) legenda














A partir do século XIX, as mudanças provocadas pelo processo de independência política do Brasil, levaram a calorosos debates em busca de referenciais para a construção de uma nova identidade nacional. Nesse processo, a figura do indígena, antes vista como obstáculo a ser superado pela via da domesticação ou da dizimação, passam a ser ressignificados no sentido de passar a fazer parte do panteão dos símbolos de uma nacionalidade que então se construía. Agora romantizado, o indígena é pensado a partir do ideal cavalheiresco do romantismo medievalista e passa então a ser exaltado em suas características de bravura, dignidade e lealdade, vistas enquanto naturais à sua raça, em resposta à crítica feita pelos nacionalistas da deteriorização desses aspectos no outro lado do Atlântico. Heroicizado, torna-se então novo mártir, verdadeiramente “morto” em favor da nação.

Ubirajara - personagem clássico da literatura brasileira



          Fossem eles os valentes e românticos Peris, Iracemas ou Ubirajaras de José de Alencar ou a idílica personificação de uma inocência edeniana, o certo é que não tardou para que se atestasse, mais uma vez, a necessidade de integração do nativo ao novo projeto de nação e para que antigas aspirações de civilização e integração à sociedade fossem novamente postas em curso. 

          A partir do estabelecimento da República: necessidade de fundação de uma identidade nacional homogênea se reafirma e, sob novas orientações jurídicas e normativas, órgãos institucionais se encarregaram da tarefa de identificar, mapear e legitimar territórios ocupados pelas mais variadas nações indígenas, dando início a um novo plano assimilacionista que via na tutela do Estado o caminho mais rápido para sua integração. Ao contrário do que se poderia supor, tais tentativas de superação da identificação étnica e cultural indígena tanto não lograram o sucesso esperado, como ainda fizeram emergir novas reivindicações sociais das referidas populações, fossem elas territoriais, identitárias, pela defesa de direitos ou mesmo pela própria autonomia e gerenciamento de suas contendas políticas e culturais.

Marechal Rondon ao lado do chefe Nambikwara e sua esposa: o barulho do relógio de bolso provoca sorrisos. Foto: Acervo Museu do Índio / Funai. Fonte: http://g1.globo.com/Amazonia/0,,MUL1600934-16052,00.html.

O papel da escola na formação de uma identidade nacional

          A concretização da ideia de uma identidade nacional homogênea perpassava, portanto, por duas necessidades principais: 
    - Eliminação das diferenças dos grupo através da assimilação/integração a um modelo instituído;
    - A incorporação das novas concepções acerca dessa nova identidade nacional pela população;
       Essa incorporação deveria ser efetivada através dos meios educacionais. A escola e seus materiais de apoio pedagógico passaram, então, a ser os maiores veículos de disseminação dessa ideia de uma identidade nacional homogênea e livre de conflitos étnicos e raciais.
          Somente a partir de fins da década de 1980 e início dos anos 90 é que irão surgir significativos trabalhos visando desvencilhar os povos indígenas brasileiros de sua imagem de mero coadjuvante nos processos históricos nacionais. 
       Todavia, o reflexo dessa nova escrita têm sido bem mais lenta e gradual no que se refere ao ensino e produção de materiais de apoio didático pedagógico para o ensino de História. Ações governamentais têm sido postas em prática, nos últimos anos, em favor de uma democratização do ensino das relações interétnicas como a promulgação das Leis nº 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008.
         Desta forma, a partir de meados do século XX, a renovação historiográfica vem repensando o uso da imagem como uma nova e interessante fonte para a compreensão e ensino dos processos históricos. É possível perceber assim uma gradativa mudança nas representações imagéticas acerca dos sujeitos  na historiografia brasileira, uma gradativa mudança nas representações pictóricas acerca do elemento nativo.

As imagens e a renovação do ensino sobre a temática indígena

         Estes novos estudos e pesquisas apontam para a necessidade de se introduzir uma interpretação da história a partir da perspectiva sócio-simbólica dos próprios grupos indígenas, como forma de excluir possíveis anacronismos e equívocos reproduzidos ao longo dos anos. Um bom exemplo desses trabalhos é o do professor de História Indígena Francisco Alfredo Morais Guimarães, da Universidade da  Bahia, ao analisar a célebre gravura de Victor Meireles, datada de 1861, sobre a primeira missa celebrada no Brasil:


          O autor propõe então, a partir de uma leitura em perspectiva intercultural e a partir do recurso da bricolagem de imagens, mudar-se o ângulo óbvio de análise e interpretação da imagem, ou seja, do ponto de vista da catequização, para uma observação do ponto de vista das etnias que assistem a cena. Assim, aponta o autor: 
"[...] o uso da técnica de bricolagem no campo da pesquisa educacional, que é definida como um modo de investigação que tem como propósito incorporar diferentes pontos de vista a respeito de um mesmo fenômeno, analisando-o e interpretando-o a partir de diversos olhares e contextos existentes na sociedade ou invisibilizados por ela, considerando os campos simbólicos" (GUIMARÃES, 2015)
         
         Dessa forma propõe-se uma nova perspectiva de compreensão e ensino da temática indígena focado no diálogo intercultural e a partir de uma experiência de ensino que tem em vista refletir sobre o problema da invisibilidade do sujeito indígena na articulação da sua própria vivência e questionando a hierarquização social e cultural realizada pelo paradigma europeu a partir do que o autor chama de "prática pedagógica dialógica". Buscaremos pesquisar e compartilhar aqui no blog, essa e outras experiências interessantes para se trabalhar o ensino de história e cultura indígena em sala de aula. 

Referências

GUIMARÃES, Francisco Alfredo Morais. Diferentes formas de ver, diferentes formas de pensar: uma experiência com bricolagens na formação de professores/pesquisadores indígenas na Universidade do Estado da Bahia. Texto apresentado no XXVIII Simpósio Nacional de História - ANPUH, Florianópolis - SC, 2015.
SILVA, Renata Carvalho. Da Kriwiri para os Karaiu: linguagem audiovisual e memória histórica dos Tenetehara da aldeia Kriwiri-Januária. Monografia apresentada ao Curso de História Licenciatura da Universidade Estadual do Maranhão. São Luís - MA, 2011.

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