Por que discutir História Indígena e Educação?
A história do ensino de História no Brasil tem um caminho que, desde de meados do século XIX, oscila entre uma formação voltada para a padronização das memórias nacionais e a formação de uma identidade homogênea, tudo para legitimar uma pátria em formação, através de seus símbolos, hinos, heróis, unidade cívica, cultural. Ao longo do tempo prevaleceu um ensino voltado para a erudição e baseado em fatos únicos, oficiais, com personalidades históricas escolhidas para representar a nação, como é o caso de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e a necessidade de se resguardar as datas destes feitos.
Na atualidade, o ensino se estabeleceu em outras bases, como as que asseguram um olhar crítico, buscando implementar uma escrita com base na defesa do direito às diferenças sociais, étnicas, de gênero, culturais, etc., que se tornaram grandes demandas do século XXI voltados para a defesa dos Direitos Humanos. No entanto, para que saíssemos de um modelo educacional pautado nos conteúdos eruditos e na simples memorização de datas e fatos históricos, foi preciso, além do tempo, de importantes renovações historiográficas, como a que ocorreu com a historiografia africana , que possibilitaram transformar a escrita da História e o voltando o pensamento para uma perspectiva mais regional e menos europeia.
Fonte: https://www.estadao.com.br/noticias/geral,a-historia-da-educacao-paulista-imp-,704196
Os anos de 1980 foram simbólicos para essa demarcação de mudança de mentalidade, estabelecendo novos pressupostos conceituais e novos conteúdos para o ensino de História no Brasil. Mudanças estas oriundas das décadas anteriores de1960-70, através de muitas mudanças políticas e culturais no mundo, apesar do rígido controle dos governos militares. A crítica à ditadura militar, realizada pelos diversos movimentos sociais e sociedade civil, culminariam no texto da Assembleia Nacional Constituinte, que viria a estabelecer a Constituição Brasileira de 1988, baseada na própria Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão de 1948, além de estabelecer as principais diretrizes educacionais.
Com a promulgação desta Carta Magna se estabelece a preocupação em proteger o Estado Democrático de Direito e a proteção das diversidades étnicas, sexuais, religiosas e de gênero em toda a sociedade brasileira baseada na Declaração de Direitos Humanos estabelecida pela Organização das Nações Unidas em 48. Nesta mesma Constituição se estabeleceu as chamadas liberdades individuais, como o direito de ir e vir, expressão, de se manifestar e muitas outras liberdades. O estabelecimento de uma nova Constituição mais ampla e democrática, bem como a atuação constante das militâncias e movimentos pró indígena, foram fundamentais para se estabelecer os direitos dos diversos povos indígenas do Brasil.
Fonte: https://www.politize.com.br/assembleia-constituinte/
O sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen fala que os movimentos indígenas na América Latina em articulação com vários outros países foram e ainda são fundamentais para o reconhecimento jurídico das múltiplas identidades étnicas que compõem o vasto mosaico das sociedades latinas, como também legitimar o indivíduo indígena como um “ser de direito e de direitos” (STAVENHAGEN, s/d, p. 03).
Ao longo dos anos 1980-90, várias ong’s e associações indígenas estabeleceram amplos debates com o intuito de estabelecer leis protetivas de direito a existência e perpetuação étno-culturais dos povos indígenas. Outros direitos como o direito à terra, à proteção dos ecossistemas, às suas autonomias políticas e econômicas, à saúde e educação norteada para seus saberes, passam então, a figurar como principais reinvindicações para estes povos, tanto nacional, quanto internacionalmente.
Como exemplo das demandas indígenas no campo internacional, tem-se em 2007 a adoção da Declaração sobre os Direitos Indígenas estabelecida pela ONU e que foi construída através de muitos debates entre os membros desta organização e de membros e lideranças das próprias etnias indígenas. Esta Declaração foi bem especifica quanto aos direitos dos diversos povos, estabelecendo o direito sobre a livre determinação, sobre sua autonomia política, além dos desenvolvimentos econômicos, sociais e culturais dos povos indígenas.
Outro ponto, também importante, se remete ao direito à terra tradicional e seus recursos naturais, assim como aos direitos individuais de todos os sujeitos indígenas, principalmente quanto à diversidade de suas formações. Ainda assim, a efetivação destes direitos se tornou um grande desafio para a sociedade global e principalmente para as latino americanas, pois o acesso e direito à terra se tornou um dos principais problemas, já que a sociedade não indígena busca o controle dos seus territórios, atingindo assim o direito à livre determinação dos povos indígenas.
A educação indígena foi um dos aspectos que mais impacto sofreu a partir de tais mudanças no campo jurídico e político. Partindo da ideia de que os processos educacionais não podem ser estabelecidos em perspectiva desigual, privilegiou-se modelos que se pautassem na interculturalidade, de maneira relacional e em articulação e diálogo com as variadas culturas próximas dentro e fora do país. (ALMEIDA E SILVA, 2012).
Em virtude disto, somente em 1997 foi possível se implementar um modelo educacional pautado na diversidade etnocultural através dos Parâmetros Curriculares Nacionais e, portanto, em conjunto com os conteúdos escolares, fazer com que os alunos da escola formal fossem capazes de “conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais [...]” (BRASIL, 1998, p. 07).
Assim, a partir de 1998, com a criação do Parâmetro Curricular Nacional das Escolas Indígenas, as diversas etnias passaram a contar com uma verdadeira “política educacional” que atendesse as demandas de autodeterminação dos povos. Outras normas que também auxiliaram na transformação da política educacional foi o Referencial Curricular Nacional para as Escolas das Aldeias, criada em 21 de maio de 1998, estabelecendo currículos específicos que valorizavam a própria língua (currículo bilíngue), características étnicas e políticas, estabelecendo também o ensino dos conteúdos própriose pertencente aos seus "universos" simbólicos e normativos.
Fonte: http://portal.ifrn.edu.br/campus/reitoria/noticias/i-seminario-de-educacao-escolar-indigena-do-rn-comeca-amanha
Fonte: http://portal.ifrn.edu.br/campus/reitoria/noticias/i-seminario-de-educacao-escolar-indigena-do-rn-comeca-amanha
Mas foi apenas com a Lei n.º 10.693/2003 que alterou a Lei de Diretizes e Bases da Educação Nacional (L.D.B.) que se percebe a adoção do respeito às diferenças e a diversidade étnica nos Currículos oficiais da rede de ensino básico, esta ocorrendo a partir da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afrobrasileira, lei que viria a ser alterada, posteriormente, com a promulgação da lei 11645/2008 que adicionava mais o ensino de História e Cultura dos Povos Indígenas que deveriam ser trabalhados em especial nas disciplinas de Artes, Literatura e História.
Mesmo com todos estes avanços, ainda se percebe uma forte resistência quanto ao ensino de uma história dos povos indígenas que supere a ideia de se trabalhar a história dos povos indígenas sempre a partir da chegada do europeu, como se estes povos não possuíssem uma história, cultura ou produção material merecedora de importância ou destaque. Ainda mais grave, é tratar estes povos como estáticos, como se essas sociedades não tivessem uma cultura dinâmica, além de ainda lhes relegarem noções extremamente estereotipadas, como a noção de canibalismo, que reforçam a ideia de que seriam povos selvagens e animalescos.
Edson Silva, afirma que na atualidade estamos inseridos em um contexto de afirmação de identidades e da busca pela ocupação e conquista de espaços sociopolíticos no Brasil. Várias expressões socioculturais se tornaram reconhecidas e respeitadas, o que vem exigindo discussões, reformulações e implementação de políticas públicas que atendam as demandas sociais específicas. Dessa forma, “A lei 11.645/2008, que determinou a inclusão da história e culturas indígenas nos currículos escolares, possibilitará o respeito aos povos indígenas e o reconhecimento das sociodiversidades no Brasil” (SILVA, 2012, p.32).
O repensar o papel dos sujeitos indígenas na História do Brasil, como proposto pela Lei nº 11.645/2008 também possibilita repensar a constituição político-social brasileira. Ainda de acordo com Silva (2012), a ideia de identidade e cultura nacional esconde as inúmeras diferenças de sua composição, seja de classe social, gênero, sexual, étnica, política e religiosa, etc., ao buscar a uniformização, negando todos os processos históricos construídos pelas violências dos grupos hegemônicos, como também as formas de violências de grupos, como ocorre com os povos indígenas e os povos oriundos da África, submetidos pela violência pelos europeus.
Logo, uma efetiva aplicação das políticas educacionais de valorização de todas as especificidades étnico-culturais dos povos indígenas e afrodescendentes, com intuito de conhecer os processos de construção da heterogeneidade da nação brasileira, aquela na qual ão sejam mais tolerados preconceitos, se estabelece não apenas em um repensar as heranças e permanências do contexto de dominação colonial, bem como de tentar uma aproximação às abordagens que reconhecem os múltiplos sujeitos indígena enquanto sujeitos/atores de sua própria permanência étnica, além de questionar outros conceitos, como o de vitimização, subjugação e aniquilamento passivo, ainda comuns nas bibliografias de História do Brasil e que tendem a projetar se possível desaparecimento por uma "assimilação" à cultura dominante (SILVA, 2005, p. 03).
A importância dessas legislações afirmativas possibilita o entendimento que a educação escolar seja um lugar de construção, não apenas do conhecimento, mas de todos os elementos identitários de um povo, ou seja, lugar de formação dos modelos de sociedade que se quer conviver. Historicamente, O Brasil, apesar de ser reconhecidamente formado por várias matrizes e heranças culturais, ainda não contempla, de maneira efetiva, equilibrada e eficaz, o conjunto de suas referências formativas no sistema educacional. A Pedagogia e os livros didáticos apresentam, ainda hoje, uma visão de mundo eurocêntrica, perpetuando assim, estereótipos e preconceitos o que pressupõe que a luta por sua efetivação ainda não está completa.(BORGES, 2015, p. 06).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, M. de L. P. de. e SILVA, S. R.; Inclusão, reconhecimento e políticas educacionais no Brasil. In: NASCIMENTO, A. C.; LOPES, M. C. L. P.; BITTAR, M. (Org.). Relações interculturais no contexto da inclusão. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012.
BORGES, Elisabeth Maria de Fátima. Inclusão da História e da Cultura Afrobrasileira e Indígena nos Currículos da Educação Básica e Superior: momento histórico ímpar. In: Revista Científica Facmais, vol. IV, nº I, 2015.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: história. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
SILVA, Edson. Povos Indígenas no Nordeste: contribuição à reflexão histórica sobre o processo de emergência étnica. In: MNEME-Revista de Humanidades, v.7, nº. 18, out./nov. de 2005.
SILVA, Edson. Povos indígenas: história, culturas e o ensino a partir da lei 11.645. In: Revista Historie. UPE/Petrolina, v. 7, p. 39-49, 2012
STAVENHAGEN, Rodolfo. Os Movimentos Indígenas na América Latina: entrevista ao sociólogo Rodolfo Stavenhagen. In: Revista Novamerica, nº 117, 2008.
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